Agora, sou um trabalhador!

Um autista pode ter uma profissão ?

Elias Fortunato de 24 anos, formado em Letras pela Universidade Nova de Lisboa, é tradutor de Inglês/Português. Embora não exerça a sua profissão, foi admitido pela empresa Optocentro para desempenhar funções administrativas e operacionais, tendo como responsabilidades: a separação e entrega de lentes, faturas e guias e apoio à receção e clientes.  Esta informação passaria despercebida se Elias não fosse autista! Sim ele é autista e é capaz de trabalhar e desempenhar as suas funções adequadamente, como qualquer outra pessoa.

É importante referir que o Elias está no nível 1 do autismo, o que lhe permite ter uma vida sem grandes limitações. Não possui deficit cognitivo mas requer acompanhamento e apresenta prejuízos leves. No entanto, isso não o impede de estudar, trabalhar e se relacionar.

Diagnóstico

Segundo, as informações e esclarecimentos dados pela Dra. Inês Fortunato (mãe de dois filhos autistas e de formação académica em pediatria), um portador de autismo nível 2 apresenta um deficit notável nas habilidades de comunicação, percebe-se um prejuízo social moderado devido à pouca tentativa de iniciar uma interação com outras pessoas, apresenta inflexibilidade comportamental e evita a mudança na rotina.

Pessoas diagnosticadas com autismo nível 3 apresentam um deficit considerado grave nas habilidades de comunicação, ou seja, só conseguem manter a comunicação com muito suporte. Com isso apresentam dificuldade nas interações sociais e apresentam cognição reduzida. Tendem ao isolamento social.

Veja o video da Elias no trabalho

Apenas 20% estão empregados

O Elias, neste caso, ocupa uma pequena parcela do universo dos autistas que na sua maioria estão nos níveis 2 e 3 do autismo e que devido às suas limitações não conseguem uma oportunidade de trabalho com aspirações de construção de uma carreira profissional.

No entanto, a sua entrada para o mercado de trabalho foi pensada e aspirada pelos seus pais desde a sua infância, quando foi aceite como aluno numa escola inclusiva no Rio de Janeiro. Realço a importância da preparação antecipada, consistência, aspiração, suporte estrutural e familiar que fez toda a diferença na sua vida. Felizmente a sua mãe teve a oportunidade de sair de Angola para o Brasil e posteriormente para Portugal à procura dos apoios necessários à educação do seu filho autista, e dar seguimento aos estudos com qualidade e formação académica.

Do estágio à vaga profissional

Como parte do percurso do Elias, no ano passado teve a oportunidade de fazer um estágio numa Gelataria, onde o seu maior desafio era a interação com os clientes. A superação da socialização foi primordial para ultrapassar os obstáculos de relacionamento interpessoal.

Recentemente participou num processo de seleção a uma vaga para portadores de necessidades especiais, que resultou na sua contratação.

Assim como o Elias se preparou para a entrada no mercado de trabalho, o mercado de trabalho também deve preparar-se para receber os autistas. E a Empresa Optocentro foi exemplo disso.

A empresa Optocentro procurou informações, esteve aberta ao estímulo da inclusão e diversidade no seu quadro de funcionários, fez as adaptações necessárias para viabilizar a contratação e permanência do Elias no plano de carreira existente, tornando assim um ambiente laboral igualitário a todos os funcionários, sem distinção às necessidades especiais de cada indivíduo.

Segundo o Elias, e muito feliz! Disse-me:

“Lá na empresa sou tratado de uma maneira muito positiva e agradável”

Elias Fortunato

O que diz a Optocentro em relação ao Elias e ao tema Autismo

A integração do Elias na Optocentro partiu de uma iniciativa da própria empresa, que contactou o CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão, manifestando a sua intenção de reforçar a cultura de diversidade e inclusão da empresa, através da contratação de um colaborador com PEA. O perfil de capacidades, qualificações e necessidades do Elias foi apresentado à empresa e, num trabalho conjunto entre a empresa e o técnico de emprego apoiado do CADIn, baseando-nos no modelo Inclusive Job Design, foram selecionadas as tarefas que correspondiam ao perfil do Elias.

O Inclusive Job Design é um método destinado a criar emprego sustentável para pessoas com deficiência, para quem as oportunidades de um emprego competitivo são, como se sabe, limitadas. A metodologia implica analisar e redesenhar os processos de trabalho, identificar as tarefas de suporte e redistribuir as tarefas entre os profissionais: o pessoal altamente qualificado ficará mais disponível para desempenhar as tarefas em que é competente e qualificado. As tarefas de suporte, para as quais o pessoal altamente qualificado é “demasiado qualificado”, serão compiladas num novo trabalho indicado para uma pessoa com deficiência, que consegue desempenhar as tarefas neste novo trabalho.

A inclusão do Elias foi preparada em três fases:

  1. Consciencialização sobre as PEA – a equipa de acolhimento recebeu formação sobre as características e necessidades das pessoas com PEA, em geral, e do Elias em particular, bem como sobre estratégias para aumentar a funcionalidade de colaboradores com PEA no local de trabalho;
  2.  Seleção de um tutor / mentor no local de trabalho – pessoa de referência para o Elias que planeia as atividades, apoia, forma, avalia e dá feedback;
  3. Identificação de ajustamentos razoáveis ao posto de trabalho.

Para apoiar a comunicação entre o Elias e a equipa de acolhimento, fazemos reuniões regulares para avaliar o progresso na adaptação, identificar possíveis dificuldades e formas de as superar. Estas reuniões são habitualmente mais frequentes na fase inicial de integração, tornam-se mais espaçadas na fase intermédia e ocorrem apenas em situações de crise na fase final. A periodicidade das reuniões é, contudo, estabelecida caso a caso, de acordo com as necessidades do candidato e da empresa de acolhimento.

O Elias está integrado na Optocentro há 2 meses e tem provado o seu valor. Os trabalhadores com PEA, quando apoiados na obtenção e manutenção de emprego, são geralmente mais empenhados do que os trabalhadores sem deficiência, porque sentem a necessidade de provar o seu valor. O trabalho é mais do que um meio de garantir a sobrevivência, é também uma forma de aceitação social e este aspeto é mais valorizado por estes adultos, que procuram ver as suas capacidades reconhecidas através do trabalho. As estatísticas ​​revelam, no entanto, uma população que ainda anseia apor ter acesso aos direitos da população adulta, como ocupação, habitação e emprego, especialmente aqueles com PEA sem deficiência intelectual, que parecem ainda mais excluídos da sociedade.

É nossa esperança que o modelo de emprego apoiado utilizado na integração do Elias contribua para apagar os prefixos “in” e “des” das palavras “incapaz” e “desempregado” que ainda existem na vida de jovens e adultos com PEA, mudando assim a história destas pessoas no nosso país.

Sandra Ferreira de Pinho

O que dizem os estudos sobre o tema em Angola

Uma pesquisa realizada nos EUA pela Autism Speaks, organização focada em promover soluções para portadores de autismo, revelou que 85% dos indivíduos com espectro autista estão fora do mercado de trabalho.

Em Angola, por sua vez, não existe uma estatística exata sobre dados relativos ao número de autistas existentes no país, os autistas são vistos como pessoas com deficiência. Segundo o Censo Populacional realizado, em 2014, pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), estas enquadram-se na deficiência mental de uma maneira geral, o que representa 13,6% num universo de 656.258 pessoas com deficiência.

Esta falta de informação e defasada realidade do que é o autismo leva as empresas ao desconhecimento para o recrutamento e acolhimento de pessoas com transtorno do espectro autista, perpetuando o preconceito de que o autista não é capaz de desempenhar funções administrativas e/ou operacionais com responsabilidade e eficiência.

Para que este quadro mude seria muito importante que houvesse um estudo atualizado da prevalência do autismo em Angola, assim como, um maior e melhor engajamento desde a base (escolas) a fim de orientar a sociedade civil e o estado quanto à criação de políticas públicas e tomada de decisões de investimentos da iniciativa privada, como um todo, mas também direcionadas para melhor materialização destas políticas, principalmente no que diz respeito à empregabilidade desta comunidade na fase adulta, garantindo a sua inclusão e participação no mercado de trabalho.

Legislação em Angola

Ressalto, que de forma a colmatar este desiderato, estão em vigor diplomas legais que incentivam, orientam e estabelecem regras de inclusão e contratação de autistas, cito de novo o Decreto Presidencial nº12/16 de 15 de Janeiro em vigor desde 15/03/16, que estabelece vagas e procedimentos para a contratação de pessoas com deficiência e trago a novidade legislativa aprovada nos Decretos: nº12/22 em vigor desde 17.01.2022 que prevê medidas de incentivos para as empresas que contratem deficientes, como a isenção da taxa contributiva da segurança social por 12 meses e o Decreto Presidencial nº 52/22 em vigor desde 17.02.2022 que concede o direito ao teletrabalho ao trabalhador que tenha pessoa com necessidade especial incapacitante comprovada, no caso de autistas severos.

Graças ao esforço das famílias, de especialistas na área e associações como a Ekanda, algum avanço tem sido feito. Hoje, diferente da época em que o Elias era criança e a sua mãe teve de mudar de país para garantir o seu desenvolvimento, a população que tem acesso a informação, já tem noção de que o autismo é uma condição permanente, e que existem tratamentos para melhorar e trazer qualidade de vida e bem-estar aos seus portadores, trazendo a possibilidade de alguns serem autónomos e produtivos como o Elias.

Fontes:

Com a colaboração da equipa da Ekanda, em especial Claudeci Gago, Elias Fortunato e Paulla Bastos.

Um especial agradecimento à empresa Optocentro e à Dra. Sandra Ferreira de Pinho, Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta – CADin IPSS.

Mario NascimentoAgora, sou um trabalhador!